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Senso de carência e senso de limite: reflexões sobre a oficina, CEM 804 Recanto das Emas, setembro


Se a intenção for transformar e superar em vez de justificar, esse processo deve começar com algo que podemos chamar de experiência dos limites, pelo menos em dois sentidos: primeiramente, o desenvolvimento da civilização moderna torna atualmente visíveis os limites inevitáveis com que temos de lidar, inclusive no que diz respeito à própria sobrevivência da humanidade; em segundo lugar, fazer a experiência dos limites significa apreender criticamente as possibilidades humanas como meios de realização das finalidades humanas. Sob esse segundo aspecto, a crise da contemporaneidade se manifesta, como sabemos, na desproporção entre abundância de meios e miséria quanto ao discernimento dos fins. Nesse sentido, é preciso entender que as transformações históricas que estamos vivendo, principalmente nessa fase tardia da modernidade, devem ser apreciadas com muita cautela e com grande sentido de responsabilidade. Já não cabe a concepção de que vivemos num mundo em transformação e em constante progresso: a realidade desmente esse juízo ingênuo. Vivemos num mundo em que precisamos estar atentos para a relação entre limites e possibilidades no que concerne a tudo que podemos e devemos fazer.


(Leopoldo e Silva, Franklin, Limites e possibilidades do ensino de filosofia. Estudos avançados, n. 32, v. 93, São Paulo, 2018)




Em setembro de 2018 fizemos oficinas em torno dos mapas com turmas de filosofia do primeiro ano do ensino médio, na Escola CEM 804 do Recanto das Emas, região administrativa do Distrito Federal. O modelo metodológico reproduziu as experiências anteriores de Planaltina, mas tentando incorporar alguns elementos cênicos que são peculiares ao modo de atuação do professor das turmas com quem trabalhamos, o docente Antônio José Amaral do Nascimento. Já sabíamos, pela sua ex aluna e participante do projeto, Ana Paula Lopes, que o docente gostava de trabalhar com formas de teatro. Quando chegamos para a primeira oficina, estava havendo uma apresentação teatral sobre contos populares, que o professor incentivava que fossem interpretados por conceitos da filosofia. Não tivemos muito tempo para conversar sobre o método com o professor, mas esperamos poder entrevistá-lo em breve.


Nas oficinas em torno do mapa, reapareceram os elementos que já haviam chamado nossa atenção em Planaltina. Ao primeiro levantamento, que inventaria os espaços e o que compõe a localidade – a escola, o centro olímpico, o terminal de ônibus, os lugares de diversão, a moradia de cada um –, seguem-se, como que em um crescendo, o inventário dos desejos. Nesse imaginário, comparecem não só questões cotidianas como locomoção e segurança, mas também os elementos do que Franklin Leopoldo chama de “macdonaldização”: as primeiras carências geralmente são da ordem do consumo, comum ao imaginário imposto ao adolescente. Mas em seguida surgem também carências mais inusitadas, às vezes ligadas a um desejo secreto daquilo que fica fora da cena, desejo pelo desconhecido. E emergem então, como que sorrateiramente, espaços para rave, em seguida para consumo de drogas, para prática de sexo etc. Em ambos os casos, macdonaldização cultural e o que poderíamos chamar de contracultura, os desejos se expandem dentro de um campo de expectativas contemporâneas por vivências extremadas, por vivências de choque, muitas vezes hiperindividualizadas.


No momento em que simulamos um debate politico, no modelo das encenações didáticas propostas pelo prof. Antônio, esse mesmo elemento extremado, a vivência do deslimite que foi acionada pelo imaginário utópico, precisou ser reconfigurada em um discurso que desse conta de pensar, para além do indivíduo, a cidade como um todo. Não só nos casos citados acima, mas também, por exemplo, em um momento em que o shopping center se colocava em confronto a uma área de preservação no mapa. O debate sobre o espaço livre para consumo de drogas, que foi adicionado ao mapa como uma forma de afronta, um teste, ou como uma brincadeira – mas o seu caráter lúdico não deixa de ser indicial –, ganhou, então, a forma de um discurso dos limites sobre o uso controlado dessas substâncias proibidas dentro de uma sociedade, e sobre a eficácia de sua proibição. O mesmo sobre os lugares para práticas sexuais. Debates que remetem a problemas muito conhecidos dos teóricos da cidade. O espaço do mapa, a coexistência localizada em uma representação única, como escreve Luca Mori, leva ao confronto dos vários modelos possíveis e à percepção de sua incompossibilidade. Em seguida, leva à necessidade de uma decisão. Em seu livro Utopia das crianças de 2017, Luca Mori descreve os experimentos mentais em torno da construção de uma ilha utópica com crianças de 5 a 11 anos, em diversas escolas italianas. Ao tratar de uma discussão dos estudantes sobre como se deveria habitar a ilha utópica de seu experimento, Mori escreve:


A necessidade de encontrar um modo para entrar num acordo, mesmo que provisório, emerge com clareza quando se passa do discurso ao desenho. Se quero desenhar a ilha, com efeito, tenho que escolher apenas uma disposição entre as muitas que no discurso tendem a se sucederem e a se sobrepor: terei de desenhar uma grande casa para todos, ou muitas casas próximas, uma por família? Na ilha há uma vila ou há casas isoladas, espalhadas aqui e ali, ou ambas as coisas? [...] Impulsionado pelo resultado da votação que considera o limite potencial de uma maioria, o grupo está comprometido com a pesquisa de um consenso mais amplo, explorando maneiras de combinar a vontade de morar juntos, com aquela de morar separado, centrada em geral sobre a forma do vilarejo, que consiste em casas próximas umas das outras, ao longo da torrente que atravessa a ilha. (MORI, Utopie di Bambini – il mondo rifatto dall' infanzia, Pisa: Edizione ETS, 2017, tradução nossa)


A partir da coexistência representativa no espaço “físico” do mapa do Recanto das Emas, os estudantes começaram também a equacionar a coexistência das carências e dos desejos, em um espaço político compartilhado. Voltando a nossa epígrafe, o experimento da cidade utópica a partir do mapa real proporcionou aos estudantes do Recanto das Emas uma discussão que:


Depara-se assim com a tensão entre o senso das carências a serem satisfeitas e o senso dos limites aos quais é preciso se ater na satisfação destas carências: do modo como os fundadores de uma utopia conseguem elaborá-la, enfrentado a pergunta sobre as primeiras carências, pode depender muito do aspecto que a ilha assumirá em seguida [...] Ao responder à pergunta sobre as primeiras carências, encontra-se o mesmo problema assinalado na República de Platão, quando Sócrates e Glauco debatem sobre o conflito entre os que se atêm ao limite das carências naturais (chreia) e os que aspiram a viver no luxo (tryphe): moderando os desejos, a cidade cria boas probabilidades de manter-se sã (hygies); cedendo ao luxo, ao contrário, torna-se “inflamada” (phlegmainousa), como ocorre com uma parte do corpo que entra em contato com um excesso de substâncias lesivas. (MORI, 2017, tradução nossa)

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