Uma política dos afetos – reflexões sobre a oficina CEM 01 Paranoá, outubro 2018
Dando continuidade ao projeto, no âmbito da disciplina Estágio Supervisionado, a professor Glaúcia Figueiredo supervisionou os estagiários André Whilds e Laise nesta oficina na escola CEM 01 do Paranoá. Além dos estagiários, a bolsista Dayane Cristina Ferreira e Lucas Noronha também participaram da equipe.
O professor de Filosofia da turma, Vinicius Sousa, já trabalha conosco há muitos anos, desde o PIBID, e a sua metodologia de aula comporta muitos projetos alternativos, como os Info-zine, pequenos fanzines, jornalzinho de uma página reproduzidos em xerox, produzidos pelos estudantes, que atualmente contam várias edições, sempre versando sobre temáticas comuns ao universo dos jovens. O projeto dos fanzines é muito afinado ao nosso em seus objetivos.
Foram dois encontros. No primeiro, a turma, dividida em dois grupos, produziu mapas segundo o modelo já experimentado e, no segundo, os mapas foram trocados e as equipes incidiram sobre as propostas do grupo anterior, reconfigurando, criticando ou assimilando as ideias. Por fim, com a sala dividida em duas fileiras, os mapas dispostos nas paredes, iniciou-se um debate.
Sobre o debate, gostaria de ressaltar um momento específico, muito embora várias outras questões possam ainda ser discutidas. Em determinada altura da conversa, um grupo ponderou que o muro de contenção – originalmente sugerido como proteção a uma área de preservação ou a uma nascente, se bem me recordo – poderia também servir de separação entre os dois estratos sociais do mesmo bairro. “Um muro como o de Trump?” – retrucaram alguns. Outros ponderaram: um muro que protegeria cada um dos grupos sociais em seus usos e modos de vida, impedindo que “vendo um celular melhor que o seu, a pessoa tivesse impulso de roubar”, por exemplo. As pessoas, assim protegidas, poderiam conquistar suas coisas, suas casas, sem medir-se pela casa dos outros.
“E se todas as casas fossem iguais?”, sugeri, tendo por mote uma das questões tratadas por Luca Mori na sua utopia das crianças, livro de 2017. Trata-se da descrição e análise de oficinas com crianças entre 5 e 11 anos em escolas da Itália, cujo exercício propõe a construção de uma utopia político/social. Cito trecho do livro que estamos traduzindo:
Quanto à ideia, mencionada acima, de construir casas iguais para todos, volta à mente a posição de Thomas More e aquele levantada em Molfetta, por Antonella, nove anos:
“Eu, porém, diria que as casas deveriam ter todas a mesma dimensão: porque ai, assim, acaba o problema de alguém dizer: “eu tenho uma casa maior que a tua”, “eu tenho a casa menor”.
Em Pisa, Ana, também de nove anos, acredita que as casas podem ser diferentes somente se todos tiverem os mesmos meios para construí-las; devem ser a mesma para todos, se na ilha há ricos e pobres e se os primeiros – como é natural de se esperar – querem comprar coisas mais belas: “se um tem menos dinheiro para comprar aquilo que quer e outro tem [mais dinheiro, pois é mais rico], então todo mundo [deve fazer as casas] iguais, porque senão teria muita diferença, o pobre teria sempre menos”. (MORI, Utopie di Bambini – il mondo rifatto dall' infanzia, Pisa: Edizione ETS, 2017, tradução nossa)
Um estudante ponderou: “isso seria socialismo!?”. E se não aventássemos necessariamente termos como esse, se inventássemos outros modos de organização ainda não catalogados? Quando o assunto seguiu por esse rumo, fez-se silêncio. A discussão não avançou, houve até certo retraimento ao se acionar termos polêmicos como “socialismo”, comportamento que muito poderia nos ajudar a compreender estereótipos políticos em circulação. Como nosso foco não é direcionar o debate, os próprios estudantes retornaram à questão de sermos sempre movido pelo consumo, impulsionados pelo que não temos: isso não seria bom para o desenvolvimento dos jovens – o muro seria antes de tudo uma proteção. Ou uma reinterpretação radical, e mesmo cruel, da noção de cada um segundo suas capacidades? Vale lembrar que os estudantes participantes do debate não necessariamente pensam se localizar no lado mais “rico” do muro. O caso já citado do celular, novamente: diante de uma máquina melhor do que a minha, despertam necessidades que não tínhamos. “Nesse caso – sugeri – vocês estão dizendo que a inveja é um motor político?”. Luca Mori trabalhou caso semelhante:
Em outro grupo pisano, Giorgio, de 9 anos, assim se coloca:
Ou pode acontecer que o invejoso se volte para o outro, que ele acha que é favorecido [...], a gente poderia não fazer as casa iguais, mas ninguém poderia ampliar a casa, porque senão vai ao infinito: tipo, se faz uma lei: “você não pode melhorar o lado externo, só o interno”.
Na segunda solução, o problema da inveja poderia ser evitado estabelecendo um limite para as modificações externas nas casa por meio de uma lei, relacionada, acima de tudo, às dimensões e ao conforto, deixando que se modifique livremente o interior como se desejar. (MORI, 2017, tradução nossa)
No caso de Luca Mori, equacionam-se liberdade individual e igualdade. Mas pretendia, na minha intervenção, não só me aproximar dos dados selecionados por Mori em suas oficinas, mas também sugerir um caminho de leituras possíveis abertas pelas expectativas dos alunos. Nesse momento, o professor poderia trazer textos como os de Hobbes ou Espinosa, nos quais o afeto é motor político social. Afetos tristes e afetos alegres enfeixam-se em torno de nossas dinâmicas sociais, o que foi claramente exposto pelos estudantes de forma um tanto trágica. Se fosse possível dar continuidade às oficinas, um bom trabalho seria recorrer a esses autores, ou mesmo ao texto de Imannuel Kant, Ideias de uma história do ponto de vista cosmopolita, no qual o jogo do progresso da espécie se vale das pequenas desavenças humanas, explicitando que os questionamentos que impulsionam nosso dia a dia foram alvo de pensadores políticos. Por esse caminho, evitaremos também chavões esvaziados de interpretação política que parecem tolher a capacidade de debate e imaginação social. Vale ressaltar que a oposição entre autores, assim como o debate que se desenvolve nas oficinas, não pressupõe certo ou errado ou uma resposta final.